















Gostaria de ser um matutino. Despertar com os primeiros raios do sol, sentir o cheiro do café passado, ouvir os passarinhos cantando e o Macedão falando na Gaúcha. Tomar um mate e pensar. Li um dia, acho que quem escreveu foi o Simões Lopes, que tomar mate ajuda o gaúcho a pensar, e é isso que é. Fosse eu um matutino, matearia e pensaria. Seria muito mais inteligente.
Mas não sou um matutino. Sou um noctívago. Durmo tarde. Vou-me madrugadas adentro.
Só que ontem, não. Ontem, acordei cedo. Ao menos sete horas, para mim, é cedo. E lá estava eu, desperto e alerta feito um escoteiro, ouvindo as cotovias chilreando e lendo a Zero Hora, que transferi para a Orla.
Então deparei com a notícia de que o Scliar havia sofrido um AVC. Olhei para o dia que se esparramava sobre os paralelepípedos, do outro lado da varanda. Fazia o que Steinbeck chamaria de uma manhã enfarruscada. Vento forte, céu cinza-chumbo, uma terça-feira invernal na Orla.
Pensei, com certa melancolia, que o Scliar é um ser humano que torce a favor. Como é raro isso. O amigo de verdade, sim. O amigo de verdade é um pouco como mãe: o apoio que vem dele é incondicional. Ele, a priori, defende: se o amigo fez o que fez, é por ter motivo.
Agora, se o amigo não defende, se é malicioso, se vibra com um eventual revés, ele não é amigo.
A maioria, como se sabe, não é amiga.
O Scliar, não posso dizer que ele seja meu íntimo. Damo-nos bem, conversamos volta e meia, mas não nos frequentamos. Porém, o Scliar é um caso raro de ausência de malícia e de apoio constante. É um homem generoso, que está sempre sorrindo, sempre a favor.
Tomei café pensando nisso, torcendo a favor do Scliar. Então, vi no horizonte réstias de céu azul-claro. Não daria praia, claro que não, mas o vento amainara e talvez estivesse ideal para uma vigorosa caminhada pela areia, 10 quilômetros ida e volta de Xangri-lá a Capão, passando pelas amenidades de Atlântida.
Foi o que fiz. Lá pelas 10h, marchei para a praia. Ao chegar às proximidades do mar, percebi que o azul do céu já estava mais desvelado. Para minha surpresa, a praia não estava vazia. Ao contrário, todos tiveram a mesma ideia. Nós, praianos, saímos para caminhar nessa manhã de terça de quase chuva, quase inverno, quase frio.
Aí cruzei por uma jovem senhora que brincou:
– E aí, praiano!
Acenei de volta. Logo em seguida passou um correndo e gritou:
– Vi duas Jôs lá atrás! No Villa!
Ri para ele. E um casal que vinha no sentido contrário capturou o meu sorriso, e riram em retribuição, e ela ensinou:
– Tem que sorrir para o mundo, David!
Sorrir para o mundo. Aquilo foi tão sábio. Encheu-me de alegria. E lá atrás do mar o sol enfiou seus raios por entre as nuvens e o dia ficou bonito, bonito. Tanto que lembrei: estou sem protetor, melhor voltar. Voltei depressa para não queimar a pele branquicela. Cheguei em casa me sentindo bem e outra vez pensei no Scliar. Ele seria capaz de dizer isso a alguém que passa: tem que sorrir para o mundo!
E tem mesmo.
Passei o dia sorrindo para o mundo. Ainda que o dia voltasse a enfarruscar, como voltou. Ainda que se desmanchasse em chuva contínua, como se desmanchou. Sorri. Em homenagem aos leitores praianos que sorriram para mim. Em homenagem ao Scliar que está sempre a sorrir.